quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Volta à Ilha - Dia 3

E estamos quase na recta final da volta à ilha!


Dia 3

 Estava eu dentro do amoque em S. Miguel e acordei lá para as 5h00, hora normal para se acordar no campo. Os rapazes que me acolheram já estavam lá fora a comentar qualquer coisa há bastante tempo e a certa altura houve um que me disse que tinham que ir andando para o campo. Como eu ainda estava deitado a ganhar coragem para iniciar o complicado processo que é arrumar tudo, calçar as meias, e depois os botins, disse apenas para irem andando que eu já saía. Mas eles queriam dizer qualquer coisa, e queriam que eu saísse do meu ninho alienígena, por isso lá rastejei para fora e veio um rapaz dar-me o botim sem o cano e uma meia comprida. Tinham tratado de tudo e eu nem tive que pedir nada!

 Mil obrigados depois, lá me arrastei até à canoa para me ir calçar mas os pés (e as feridas) estavam cheios de areia por isso tinha mesmo que ir lavar tudo no rio mais próximo antes de me calçar. A praia tinha calhaus rolados mauzinhos e dolorosos e dar um passo que fosse era insuportavelmente doloroso por isso um dos dois rapazes que ficou para trás teve a amabilidade de ir encher um cantil com água do rio e trazer-me de propósito só para eu poder lavar os pés ali no meio do chão e assim vestir as meias e os botins por cima daquilo tudo. Num pé um botim normal, no outro um couto queimado e derretido do tamanho de um  sapato de casamento. Por cima vesti as calças e estava pronto para partir à aventura, mas não sem antes agradecer-lhes da única forma que podia. O rapaz recebeu 50.000 e um sincero muito obrigado em troca da meia e o outro rapaz recebeu uma lata de atum, um sorriso e um até à próxima em troca do charoco do jantar da noite anterior.

 Mas a simpatia deles não ficou por aí e ainda me conduziram pelo caminho até chegar a um sítio onde me garantiram que não haveria mais problemas e era sempre em frente, sempre por caminho liso e fácil. 

Descobrir isto no meio da floresta ao fim de
andar várias horas a roçar mato é uma visão
 fantástica!
 Nunca mais voltei a ver o Takashi e claro que me perdi na primeira derrocada que vi à frente. O caminho antigo existe, mas não se pode encará-lo como uma linha contínua. Em vez disso é um conjunto de trechos separados por floresta densa. Quando se descobre o caminho (normalmente assinalado por um caos de pedras espalhadas numa ordem mais ou menos linear) convém segui-lo até ele acabar e depois há que inventar. E foi justamente isso que fiz quando o trilho desapareceu e me forçou a subir a encosta. Por essa altura a técnica com o machin já estava bem apurada. Já sabia o ângulo preciso para cortar uma folha de palmeira de uma só vez, já conhecia aqueles fetos espinhosos que se cortam como manteiga, e já identificava quais a lianas que não valia a pena tentar cortar porque parecem cabos de aço.









 Mais uma paragem para beber um leitinho à moda do rio e logo a seguir reencontrei o caminho, ou assim eu pensava. Naquela zona os trilhos dos porcos e das pessoas misturam-se bem demais, as pegadas duns sobrepõem-se às dos outros e era preciso confiar cada vez mais nas pistas que o caminho me oferecia. Um feto cortado com a ponta seca, um resto de uma pegada na lama, um arranhão numa raiz saliente, tudo servia para me dar confiança que estava no caminho certo. Continuei assim até que voltei a pisar o caminho antigo e este terminou bruscamente numa levou até a uma ponte caída.

 Estava ali à minha frente o rio que, a julgar pelo mapa, devia ser o Rio Mussacavú, um rio largo demais para atravessar sem molhar os pés. Andei ali às voltas indeciso. Não me apetecia mesmo nada repetir o ritual de tirar os botins e as meias e as calças só para entrar na água e sair do outro lado cheio de areia. Mas não havia escolha por isso enfiei-me por um trilho de porcos e lá teve que ser.
 Enquanto atravessava o rio fui completamente bombardeado por tafões (umas moscas de gado - formato XXL) que poisavam no cabelo e na cara e nas orelhas e no nariz e em todo o lado. Como segurava a mochila pesadíssima em cima da cabeça não havia muito a fazer além de me sacudir que nem um gnu e atravessar o rio o mais rápido possível.
 Chegado à outra margem, começou a vingança. Enquanto estava sentado a secar (porque é que não trouxe uma toalha?) os tafões não paravam de vir, só que aqueles bichos são tão gordos que têm uma inércia enorme a descolar por isso são fáceis de apanhar se formos rápidos o suficiente. Fui picado várias vezes mas também matei tantos que lhes perdi a conta mas posso assegurar que o número tinha dois dígitos. 

 Meias calçadas, calças vestidas, botins enfiados, e lá fui eu, com todo o peso da mochila enterrado fundo nos ombros. Por aquela altura a t-shirt molhada já raspava nas costas há tanto tempo que parecia estar a fazer ferida, mas paciência, o caminho continuou.
Todos os rios são locais de paragem obrigatória para descansar, beber água e encher o cantil.
 A julgar pelo mapa, a estrada antiga devia continuar para dentro mas a verdade é que seguia em frente. Mas o mapa devia ter razão, por isso acabei por me embrenhar fundo num pântano cheio de porcos assilvestrados que me encaravam com desconfiança. E eu encarava com desconfiança aquele caminho... Aquilo não parecia um trilho usado por pessoas por isso voltei tudo atrás e seguindo o GPS e os meus instintos abri o caminho até à praia com a ajuda do infalível machin. 
 Os calhaus rolados já tinham ficado para trás e só havia areia escura e as reconfortantes pegadas de cães, porcos e pessoas que segui até chegar a Santo António. Aí encontrei uma casa jeitosa, com uma data de bananeiras e demasiados cães soltos para o meu gosto. Quando o primeiro soltou o alarme, começaram a chegar mais e mais vindos da floresta, e tal como uma alcateia que rodeia a presa, cercaram-me, por isso tive que me baixar e pegar em pedras para lhes enviar uma mensagem que percebessem (não acertei em nenhum claro, é só para os desencorajar).
 Com toda aquela barulheira claro que apareceu alguém e mais uma vez, colocou-me no caminho certo. Só que desta vez eu fiz-lhe a seguinte pergunta: 

- Quanto tempo demora para chegar a Porto Alegre?

 E ele responde-me que com passo rápido chega-se lá em duas horas! Os pés estavam todos destruídos, as feridas nas pernas insuportáveis, as alças da mochila cravadas fundo nos músculos dos ombros; não aguentava mais uma noite a dormir no mato por isso meti na cabeça que ia chegar naquele mesmo dia a Porto Alegre e assim foi! As indicações que me deram em Santo António foram as primeiras a bater certo: Continuar sempre pelo caminho e quando se chegar lá acima, junto à fruteira, não se vira à esquerda, continua-se em frente, sempre pelo mesmo caminho. “Parece simples… mas todos as outras indicações também tinham sido…”
 A subida era fácil e o caminho bom, nada comparado com o caos de pedras e cocos que já tinha atravessado, por isso liguei o piloto automático e atravessei aquilo tudo a uma velocidade impressionante. Pelo caminho vi macacos incrivelmente perto e recomecei a ouvir as amigas Céssias que tinham estado ausentes durante todo o caminho!
 A empurrar-me para a frente estavam só pensamentos idiotas como comer pizza no Jasmim ou beber um Sumol qualquer e não sei se foi disso mas quando dei por mim estava em Malanza, a comunidade antes de Ponta Furada! Era o fim da aventura, liguei ao Fábio e ele veio todo o caminho desde a cidade para me socorrer. Mas a coisa não acabou aí porque tive a grande sorte de encontrar o grupo dos Leigos para o Desenvolvimento que está baseado ali mesmo em Malanza. Depois de me fazer de difícil lá aceitei o convite deles e subi para a casa onde nos ficámos a conhecer um pouco melhor enquanto as velas ardiam, a noite caía, e esperávamos que o Fábio chegasse.

E pronto, espero que tenham gostado!

7 comentários:

  1. Eu cá adorei. O teu amigo Takashi desistiu porque não lhe deste a devida recompensa. Afinal ele também te ajudou e merecia um mimo...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Dei sim! No segundo dia almoçou o mesmo que eu, metade de um chouriço, e à noite ainda lhe dei parte do charoco e ele comeu aquilo tudo!

      Eliminar
  2. Mais uma excelente narrativa. E cobra negra, não há medo de um encontro desagradável nessas expedições por áreas mais remotas?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Antes de mais, muito obrigado! Quanto à cobra, a coitada da bicha é tão odiada e temida mas ainda só me encontrei com uma desde que cá estou e a única coisa que fez (depois de me deixar fotografá-la) foi afastar-se tranquilamente. Como a grande maioria dos encontros com a cobra, resulta na morte da mesma, imagino que cada vez seja mais raro encontrar-se uma. São uns bichos muito pacíficos e no geral mantém-se bem longe das pessoas por isso diria que não há motivos para preocupação.

      Eliminar
  3. Humm... estás ai há uns meses e tomaste consciência de um contacto. O que me leva a pensar que houve uma série de outras situações de proximidade de que não te apercebeste. Por outro lado, qualquer "googlada" com "cobra negra São Tomé" revela uma série de textos em blogs que revelam avistamentos. Considerando que São Tomé não é propriamente visitado por muitos turistas, e que de entre estes ainda menos serão os que escrevem um blog, a coisa começa a preocupar-me.

    Por outro lado, uma pesquisa rápida indica-me que esta é uma das espécies de cobras mais agressivas, se não do mundo, pelo menos de África:

    De Wikipedia

    "Some authorities believe it is one of the most dangerous African snakes to keep, due to its willingness to try to bite, and it has been described as aggressive. Some snakes are reputed to be actively aggressive and may attack with little or no provocation. The forest cobra and the black mamba share this characteristic of being particularly aggressive."

    Por fim, a distância-tempo da maioria dos locais interessantes da ilha em relação ao hospital parece fazer equivaler uma mordedura a uma certidão de óbito.

    Gostei (gostar não é bem o termo, mas enfim...) especialmente deste artigo:

    Island Biodiversity Race: Academy Adventures in the Gulf of Guinea
    http://www.calacademy.org/medialibrary/blogs/gulfofguinea/?m=200904

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ok, mas sinceramente não acho que seja motivo de preocupação porque, ao contrário do que diz aí, a cobra não é nada agressiva e toda a gente com quem já falei diz que ela evita as pessoas e se afasta sozinha se não for provocada.
      E vendo a coisa da perspectiva da cobra: ela não vai querer desperdiçar veneno caro e precioso numa pessoa que está de passagem.
      Quanto à distância do hospital, a julgar pelo que tenho ouvido, qualquer mordidela será morte certa porque dizem que nem o hospital possui antídoto ;)
      Também convém notar que já soube de mais pessoas que morreram a cair de palmeiras ou coqueiros e nunca ninguém que morreu mordido por uma cobra.
      Dito isto sugeria apenas: deve-se andar no mato com os olhos abertos para não se pisar uma sem querer.

      Eliminar
  4. Oi... óptimo.

    Quanto ao hospital, estou a ler o guia Bradt de São Tomé and Principe, e o que a tipa diz é que no passado o hospital estava dotado com o antídoto errado, e que entretanto isso foi corrigido (a edição é de 2008). Uma info que vale o que vale, até porque a autora não me tem inspirado muita confiança, com informação contraditória ou, a tempos, absurda. Mas digo-te, com a atitude paranóica à boa moda anglo-saxónica, que esta gaja tem, se há coisa que deve ter investigado a fundo foi a questão do antídoto eheheheh

    ResponderEliminar